Naquele dia, Ana almoçou em casa. Despediu-se da mãe, vestiu um casaco, abotuou as botas, e colocou um cachecol castanho à volta do pescoço. Pegou na pasta verde e saiu de casa.
Apanhou o 83 para a portela. Podia ter ido de Metro mas não lhe apeteceu descer as escadas, obliterar o passe, entrar na carruagem, viajar de baixo da terra, sair da carruagem, subir as escadas, voltar a passar o passe e sair da estação. Aquele 83 passava mesmo diante da Repartição de Finanças 10 de Lisboa, na Fontes Pereira de Melo e Ana sabia o que queria. Um acidente nas Amoreiras atrasou a viagem uma hora e meia, mas finalmente chegou.
Ana entrou na repartiçao de finanças, dirigiu-se à máquina e retirou a senha "entrega/liquidação de IMI". A senha dizia H45. Ana sentou-se e esperou. Pegou na pasta verde que lhe foi entregue pelo sr. Rui e abriu. Lá dentro estava toda a documentação necessária para entregar nas finanças. Recordou brevemente a conversa que teve no dia anterior com o Sr. Rui: "O prédio não se encontra registado", disse. . "Já tenho tudo tratado mas não posso ir às finanças porque comecei agora a trabalhar e o patrão não me deixa sair". Ana oferecera-se de pronto para ser ela a entregar os papeis nas finanças. Afinal também era do seu interesse que tudo estivesse pronto o mais depressa possível.
Na Repartição o ambiente estava tenso. Muitas pessoas tentavam perceber porque estavam a ser informadas que tinham que pagar multas de trânsito de há cinco anos. Ana também não percebia. "É o país que temos" pensou. A televisão fez "Dlim Dlim" e do guichet do fundo alguém chamou "H45".
Ana levantou-se e dirigiu-se ao balcão 14. Do lado de lá do balcão estava um senhor na casa dos 40 anos, olhos pretos afáveis e cabelho grissalho que quando a viu esboçou um sorriso e a convidou a sentar.
"Bom dia. O meu nome é Saldanha, em que a posso ajudar?" Ana explicou ao que ia e entregou a pasta ao senhor Saldanha. "A casa é sua?" perguntou o afável senhor das finanças. "Não. Sabe sr. Saldanha, eu vou comprá-la, quero ser livre e independente." O Sr. Saldanha ficou verdadeiramente comovido com aquela demonstração de autonomia de alguem tão jovem. Comovido contou: "sabe menina, também eu já fui assim. Eu nasci numa aldeia, perdida na beira, chamada Mosteirinho, perto de São Pedro do Sul. Ainda hoje lá tenho primos. Mas de cedo vim para a Capital, e a vida não foi fácil." O olhar afável tomou tons de sofrimento e ele continuou: "tenha cuidado menina. às vezes as coisas não são tão simples como nos parecem". Visivelmente comovida, Ana explicou que a casa era muito bonita, não era cara e o proprietário era senhor de bem. O sr. Saldanha esboçou um sorriso, aceitou os papeis, confirmou estar tudo em ordem, carimbou, entregou uma cópia a Ana e despediu-se.
Ana, tentando suavisar o sofrimento que Saldanha apresentava, disse-lhe: "Quer ir lá ver a casa.". O Sr. Saldanha assentiu. "Só saio às quatro." "Eu espero". Eram duas e meia e Ana esperou.
Foram os dois à casa. Ana tinha uma chave que o Sr. Rui lhe confiara. Entraram em casa. "É realmente bonita" disse o Sr. Saldanha, com as lágrimas nos olhos. Ana, verdadeiramente emocionada, pegou-lhe na mão, tirou-lhe a aliança que pousou em cima da mesa, e levou-o para o quarto. Fechou a porta.
Vinte minutos depois o Sr. Saldanha saiu do quarto, e enquanto se dirigia para a porta ouviu do interior da pequena divisão: "Não se esqueça do meu Modelo 1". Saldanha pegou na aliança e saiu.
Com a estimada colaboração de Silvia Carvalho e João Cardoso.
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