quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

Episódio 6.1 - Sangue Suor e Lágrimas

Todos os dias à mesma hora senhor Ano saía do trabalho com dois colegas de longa data e juntos saboreavam uma bebida gaseificada que os ajudava a descontrair depois de uma longa jornada de labuta. Naquele dia, porém, inventou uma desculpa e saiu mais cedo. Precisava de ver com os próprios olhos a casa que Ana queria comprar.

Tirou um papel do bolso e confirmou a morada. Foi até ao Chiado a pé pois sabia que ali existia um posto de atendimento da carris onde lhe indicariam a melhor maneira de chegar ao local pretendido.

Sr. Ano estava ansioso. O trânsito infernal. Já eram quase quatro horas e a fuga do tempo comprometia fortemente os seus planos. Decidiu sair na paragem seguinte e fazer o resto do caminho a pé. "É mais rápido", pensou. E não se enganou. Subiu por uma pequena ladeira em direção ao bairro alto, atravessou a rua Caetano Palha, virou à esquerda e chegou à Rua da Paz.

Procurou o número da porta e encontrou a casa. A primeira impressão não podia ser pior. A casa era velha, a pintura não estava em condições e o telhado não servia o seu propósito pois certamente deixaria entrar água. É certo que tinha um pequeno quintal, ideal para aproveitar as tardes solarengas de verão, mas estava tão mal tratado que levaria pelo menos um ano a voltar a arranjar.

Sr. Ano olhou em volta e dirigiu-se ao único café que havia nas redondezas, o Café Cantinho da Paz. Sentou-se. Pediu um panachê e bebeu de uma golada. Pediu outro. Quando a empregada o serviu, perguntou sem grandes rodeios: "Conhece o proprietário daquela casa que está ali ao fundo?" "Conheço sim, o sr. Rui Passos. Bom homem coitado. Perdeu uma mão sabe, num desastre. Agora precisa de vender a casa, precisa do dinheiro. A mulher deixou-o por outro depois do acidente e durante três anos nunca o vimos com mais ninguém, mas no outro dia viram-no a entrar para lá com uma menina, bem mais nova que ele sabe? não tinha mais de 22 anos, e só sairam já quase à noite e depois..." Senhor Ano não quis continuar a ouvir a conversa. Pegou numa nota de cinco contos, pousou em cima da mesa e saiu deixando perplexa a empregada.

"Mas com que tipo de gente é que a minha menina anda metida"- pensava sr. Ano, "Um homem já feito a encontrar-se com raparigas tão novas". Eram quase cinco e meia quando passou novamente em frente à casa e se surpreendeu por a porta estar aberta. Instigado por um cruel sentimento de curiosidade, sr. Ano não se conteve e atravessou o portão da rua e aproximou-se vagorosamente de uma janela das habitação.

Naquele instante ouviu o pulsar de uma respiração suave mas ofegante que vinha de dentro da habitação. Aproximou-se da janela e, com cuidado para não ser visto, espreitou. Junto à janela existia uma pequena mesa de madeira e, em cima dela, um objeto de metal redondo que Sr. Ano não conseguiu identificar.

Entretanto, a suave respiração tinha dado origem a descompassados gemidos. Tinha de ver o que se passava. Reparou que uma luz muito ténue saía de tráz de uma porta e, contornando a casa, percebeu que havia uma janela que dava para a misteriosa divisão. Aproximou-se com a maior cautela. Os gemidos eram agora bem audíveis e Sr. Ano não tinha dúvidas do que estava a acontecer. Aproximou-se da janela, e com extremo cuidado para não fazer barulho, permaneceu imóvel junto à parede. Pareceu-lhe ouvir o nome "Saldanha" pronunciado por uma voz de mulher. Mas não podia ser, o proprietário era Rui. Intrigado, espreitou. A luz era pouca. A vontade de ver muita.

Conseguiu perceber que dois corpos completamente nus se balanceavam numa cadência ritmada em cima de uma estreita cama. Percebeu que o homem tinha duas mãos com as quais tocava ardentemente o corpo da mulher que apenas cedia ao desejo do que parecia ser um desenfreado desfazer de uma paixão proibida. "Não é o sr. Rui"- pensou. Naquele instante, um gemido passou a grito, e os dois corpos separaram-se extenuados. Sr. Ano forçou o olhar. Não conhecia o homem e não conseguia ver a face da mulher. "Vou embora pensou". Abandonou o seu posto de observação e dirigia-se muito devagar para a via pública. Ouviu barulho dentro do quarto e decidiu parar. A porta no interior da habitação abriu. ouviram-se passos. Alguém se preparava para sair. Sr. Ano, completamente imobilizado, susteve a respiração e, sem que nada o fizesse prever, ouviu uma voz assustadoramente familiar "Não se esqueça do meu Modelo 1".

No dia seguinte, Ana pegou no jornal para ver o horoscopo. Na página ao lado, estava uma cara estranhamente familiar. "Faleceu Saldanha Martins, extremoso pai e marido dedicado. O funeral realiza-se amanha, em Mosteirinho, S. Pedro do Sul". Ana soltou uma lágrima, e nesse dia, sem sequer se ter dado conta, adormeceu com a mão em cima da barriga.

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Episódio 6 - Um dia na estiva

Como era normal, Sr. Ano levantou-se às 6h30. Vestiu o traje de trabalho. O dia estava frio.
Emigrante em França durante trinta anos, sr. Ano não perdera o costume de sair de casa de manhã com a baguete para o almoço debaixo do braço a tocar gentilmente na antecâmara do mau cheiro.

Se fosse um dia normal, Sr. Ano ter-se-ia despedido de Ana antes de sair de casa. A mágoa provocada pela notícia aterradora do dia anterior impelia-o a não o fazer.

Ao meio dia em ponto, Sr. Ano largou a estiva e regressou a casa. Ana ainda dormia e, se fosse um domingo normal, a mãe tinha ido à missa e voltaria para preparar o almoço. Ao entrar na sala de estar, Sr. Ano reparou numa pasta verde de tamanho A4, com diversos papeis. Intrigado, abriu a pasta e leu cuidadosamente. A primeira folha era  um"Modelo 1 do IMI" e junto estava um fotocópia do bilhete de identidade de Rui Albuquerque Passos da Silva Coelho e de um cartão de contribuinte. Não foi preciso pensar muito para concluir que se tratavam de papeis relativos à casa que Ana queria comprar.

Leu cuidadosamente o Modelo 1 do IMI e descobriu a morada. Radiante com a sua descoberta resolveu ir ainda naquele dia ver o imóvel. O Benfica jogou, e sr. Ano esqueceu-se. Deitou-se e antes de adormecer pensou: "de amanha não passa".